Metáforas e
metonímias oficiais
O segredo de Lula é usar terno e
macacão ao mesmo tempo. Às vezes, um aparece no lugar do outro
Por Sírio Possenti
Quase ao final do Roda Viva de
30/03/2009, um entrevistador perguntou ao vice-presidente, José Alencar, se é
possível que ele e Lula apoiem candidatos diferentes em 2010. Em resposta,
Alencar contou uma longa história que envolvia quatro antigos jornalistas
esportivos do Rio, torcedores do Flamengo, do Fluminense e do Botafogo. Haveria
um jogo entre Vasco e Bangu, nos dias seguintes e a única chance de um dos três
clubes ser campeão era a derrota do Vasco. Discutiram longamente a
possibilidade de isso acontecer e, não tendo chegado a um acordo, foram ouvir
Neném Prancha. Expuseram-lhe o "problema". Ele pensou, pensou, pensou
e, finalmente, disse: "Em sendo a bola redonda, tudo é possível". O
vice riu, a bancada gargalhou.
Se a história tivesse sido contada por
Lula em resposta a pergunta análoga, não faltaria quem dissesse que ele só fala
por metáforas (análise errada, consagrada desde as menções ao tempo que
jabuticabeira leva para produzir jabuticabas) e em geral as busca no futebol.
Mas, sendo Alencar, louvar-se-á a habilidade mineira diante de uma pergunta
incômoda.
Uns podem, outros não. É uma velha
regra, que permite a Obama dizer "esse é meu chapa" e a Michelle
abraçar a rainha, mas não vale para Lula. Lula erra, Obama faz estilo. Lula é
ignorante, Obama é informal. A mesma coisa é outra, conforme se trate de um ou
de outro cidadão. Levada ao extremo, a regra se enuncia todos os dias e está em
música (imperdível) de Ary Toledo: rico correndo é atleta, pobre correndo é
ladrão.
Que Lula não é letrado já sabemos. Não
há razão para esperar que cite Montaigne ou Weber. Mas é bom analisar um pouco
melhor o que diz e o estilo de que se vale, se se quiser entender melhor - se
interessar, para combatê-lo - se o conjunto revela suas posições, estratégias
diversas para públicos diferentes, possíveis contradições, se são eleitoreiras
ou uma forma de governar, se isso é bom para a democracia, etc. Mas esqueçam um
pouco a gramática (aliás, o Manual de Redação), por favor!
A questão do ajuste às diversas
plateias, aparentemente um bom problema, é hoje menos relevante, já que falas
de governantes, sejam proferidas onde forem, se destinam à mídia. Uma coisa é o
repórter ou o cidadão que o ouve nos palanques. Bem outra é o verdadeiro
destinatário, que o verá e ouvirá nos jornais.
Suas metáforas são insuportáveis? Pode
ser. Eu posso não gostar, frequentemente não gosto, posso achar repetitivas ou
simplórias, mas quem disse que ele fala para mim? A queixa esconde duas
expectativas: a) ele deveria falar conosco, mas prefere falar com eles; b) um
presidente deveria ser mais fino. Nos tempos de Collor x Lula, uma jornalista
declarou preferência por Collor porque não envergonharia o Brasil em recepções
oficiais. Referia-se ao uso de guardanapos!
Mas há algo de insuportável nesse assunto,
que se repete há anos: as falas de Lula são genericamente classificadas como
metáforas. Até Alencar fez isso, na mesma entrevista. Claro, deve haver muitas
(o linguista Roman Jakobson mostrou que metáfora e metonímia são as leis
básicas da língua), mas o que se classifica aqui de metáfora quase sempre foi
outra coisa.
Talvez se devesse começar por um
esboço de classificação das falas de Lula. Simplificando muito: há pequenas
"parábolas", gafes, quebras de etiqueta (ou sinceridade inusitada) e
passagens que podem lembrar metáforas, mas são mais propriamente comparações
(como agora mesmo, no G-20, quando disse, pela enésima vez, que estamos num
barco que faz água e temos que jogar a água fora e consertar o barco, senão
afundamos). É bem menos chique do que febre de consumo e economia sadia... E,
sim, eventuais metáforas.
As repetidas explicações de Lula para
o que não acontecia em seus primeiros meses de governo - sobre o tempo que uma
jabuticabeira leva pra dar jabuticabas ou uma mulher para dar à luz - não são
metáforas. São comparações. Ambas têm efeitos parecidos, mas uma coisa é dizer
"o país acaba de engravidar" e outra é dizer "um governo é como
uma gravidez". Gente sábia deveria saber... Exigir um pouco de precisão de
nós mesmos - não só dele (s) - seria um bom começo.
Dizer da capital da Namíbia que é uma
cidade limpinha é uma enorme gafe, e revela uma representação absolutamente
estereotipada da África, mesmo que fosse verdade, como disseram alguns
auxiliares, que ele queria combater o estereótipo. De qualquer forma, uma
análise mais fina não faria mal.
Há expressões que estão no limite
entre um discurso e outro. Quando disse que d. Marisa engravidou na primeira
noite porque pernambucano não deixa por menos, foi pura gabolice besta. Ver aí
machismo é superinterpretação. Só foi pouco fino. Pelo menos, ninguém falou em
metáfora (embora "primeira noite" seja uma). É um ganho.
Chegou-se a ver racismo na declaração
de Lula culpando brancos de olhos azuis pela atual crise. Não há um discurso
racista, uma memória racista, que pretenda basear-se na suposta incapacidade de
brancos, por serem brancos, de gerir instituições financeiras. O sentido da
declaração é "parem de acusar os habitantes do Hemisfério Sul (ou
"não os culpem pelo menos desta vez"), ora por causa do clima, ora
por causa "das raças", de serem, por isso, incapazes de se governar,
ou de serem, por isso, mais corruptos. E, definitivamente, "brancos de
olhos azuis" não é uma metáfora. É uma metonímia - parte pelo todo, já que
nem todos os de lá são brancos de olhos azuis.
"Tsunami" e
"marolinha" são metáforas (enfim!): uma palavra por outra, melhor
ainda, uma palavra de um campo por outra de outro campo. Dita por um francês ou
por um acadêmico, é uma figura de linguagem. Por um brasileiro, ex-operário, é
vício de linguagem. Ah, as gramáticas e os manuais!
Certamente, as falas de Lula são
"populares" - em mais de um sentido. Nos palanques, lembra os
animadores de auditório. Profere comparações e expressões do dia a dia,
avaliadas negativamente em função da imagem que temos da figura presidencial.
"Sifu", forma destinada a evitar um palavrão, foi analisada como se
fosse um. Sua última fala "chocante" desapareceu, soterrada por Obama
falando de Lula como se fosse um companheiro de quadra. Caso contrário, teria
alcançado repercussão bem maior e negativa sua declaração de que, numa reunião
como a do G-20, "você não faz negociação com o pé na parede, dá ou desce,
existe uma negociação". Expressão informal? Grosseira? Pode achar. Mas não
é uma metáfora.
Acho que o segredo de Lula é que usa
terno e macacão ao mesmo tempo. Ora sua roupa de baixo é o terno, ora o
macacão. Às vezes, o macacão aparece quando está de terno. E vice-versa.
Eu acho que isso é uma metáfora.
O Estado de S.Paulo - 04 de abril
de 2009
Excelente crítica do Sírio Possenti, quem não leu, leia, vale a pena :)
ResponderExcluirCom certeza Bru, essa crítica relata o "inadequado" do sentido que a linguagem assume as vezes pelo "falante".
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